Sunday, March 20, 2005

Joe Enguia em "Almada Negreiros & Ary dos Santos"

O sol após ter trespassado os cortinados cor de sangue (de velho de 80 anos) embateu na mona de Joe Enguia, obrigando-o a abrir as pestanas muito antes do que lhe apeteceria em dias normais. Era o dia do seu regresso. Rebolou para o lado direito e apanhou um livro intitulado "Ultimatum Futurista - às Gerações Portuguesas do Século XX". Abriu ao calhas e começou a ler a página 6:

"...Eu não tenho culpa nenhuma de ser português, mas sinto a força para não ter, como vós outros, a cobardia de deixar apodrecer a pátria

Nós vivemos numa pátria onde a tentativa democrática se compromete quotidianamente. A missão da República portuguesa já estava comprometida desde antes de 5 de Outubro: mostrar a decadência da raça. Foi sem dúvida a República portuguesa que provou conscientemente a todos os cérebros a ruína da nossa raça, mas o dever revolucionário da República portuguesa teve o seu limite na impotência da criação. Hoje é a geração portuguesa do século XX quem dispõe de toda a força criadora e construtiva para o nascimento de uma "nova pátria inteiramente portuguesa e inteiramente actual" prescindindo em absoluto de todas as épocas precedentes..."

Era muita leitura para Joe, estas frases mantinham a sua necessidade em literatura por um bom par de anos. De qualquer forma, a dúvida tinha nascido, quem seria este "ma man" que até sabia juntar umas frases e quiçá umas letras? olhou, olhou... e só depois reparou no fundo da capa ".... por José de Almada-Negreiros". Alimentado pelo seu novo saber e conhecimento de umas palavras novas, Joe num ápice lavou a cara, vestiu os jeans coçados, uma t-shirt com o M, da companhia de M....armelada, gravado nas costas e assomou-se, do varadim, ao centro do pseudo-bar. Estavam nessa mesma altura a tentarem acordar o poeta, cujo retiro se situava a três longinquas casas abaixo. E foi então que de súbito, acalentado por um espasmo alcoolico, levantou-se, subiu para a mesa de um só salto e gritou:

"
Não importa sol ou sombra
camarotes ou barreiras
toureamos ombro a ombro
as feras.
Ninguém nos leva ao engano
toureamos mano a mano
só nos podem causar dano
espera.
Entram guizos chocas e capotes
e mantilhas pretas
entram espadas chifres e derrotes
e alguns poetas
entram bravos cravos e dichotes
porque tudo o mais
são tretas.
Entram vacas depois dos forcados
que não pegam nada.
Soam brados e olés dos nabos
que não pagam nada
e só ficam os peões de brega
cuja profissão
não pega.
Com bandarilhas de esperança
afugentamos a fera
estamos na praça
da Primavera.
Nós vamos pegar o mundo
pelos cornos da desgraça
e fazermos da tristeza
graça.
Entram velhas doidas e turistas
entram excursões
entram benefícios e cronistas
entram aldrabões
entram marialvas e coristas
entram galifões
de crista.
Entram cavaleiros à garupa
do seu heroísmo
entra aquela música maluca
do passodoblismo
entra a aficionada e a caduca
mais o snobismo
e cismo...
Entram empresários moralistas
entram frustrações
entram antiquários e fadistas
e contradições
e entra muito dólar muita gente
que dá lucro as milhões.
E diz o inteligente
que acabaram asa canções"

e rematou a dizer : "Gostava de um dia escrever um poema assim!". Saltou da mesa, e ainda ninguém sabe bem como, mas aguentou-se nas pernas embebidas em alcool e como se tivesse saido de uma viagem longa barco saiu a cambalear pela porta fora.

P.S: Ary dos Santos 1937-1984

0 Comments:

Post a Comment

<< Home